Implicações da transição energética para a indústria

Entrevista a Josu Ugarte, Presidente da Schneider Electric Iberia

Há uma tendência frequente para simplificar o que a transição energética implica. Fala-se apenas da mudança para as energias renováveis e do papel das empresas de eletricidade, esquecendo os desafios que ela implica para a própria rede, ou a necessidade de mudar a forma como gerimos a procura há séculos, para conseguirmos uma verdadeira transição energética.

Neste novo post da série #UrgênciaEnergética, reproduzimos a primeira parte da entrevista realizada por Meritxell Arús (MA), Diretora de Marketing e Comunicação da Schneider Electric Iberia, a Josu Ugarte (JU), Presidente da empresa, após a sua intervenção na Asamblea de las Empresas Alavesas.

MA | Boa tarde, Josu. Poderíamos dizer que hoje esteve a jogar em casa, não é verdade?

JU | Bem, sim. Vitoria é uma cidade muito especial para mim. Juntamente com Mondragón, a minha cidade natal, é um dos locais onde me senti mais amado nos meus anos de futebolista, com adeptos maravilhosos.

MA | Hoje está aqui por uma razão diferente: para partilhar a sua visão do impacto da transição energética nas empresas com os empresários de Álava. Antes de falar sobre os efeitos, gostaria de saber a sua opinião sobre como chegámos aqui.

JU | É difícil compreender a transição energética sem falar das alterações climáticas ou dos riscos associados à dependência de recursos, que são cada vez mais caros e escassos. Para mim, há três datas que devemos ter muito presentes. A primeira é 1972, com a publicação do relatório The Limits to Growth de Donella Meadows, juntamente com outros 16 profissionais, incluindo, aliás, o seu marido. Esta publicação, apesar de ter sido ignorada durante muito tempo, marca o início da consciência ecológica.

O segundo momento importante foi o Protocolo de Quioto, em 1997. Ao assiná-lo, os países industrializados e as economias em transição comprometeram-se a reduzir as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) em pelo menos 5.2%. No caso dos países da União Europeia, o compromisso foi de 8%, demonstrando já um forte empenho, que mais tarde se confirmou, na luta contra as alterações climáticas.

O terceiro momento foi sem dúvida 2015, quando, na Conferência de Paris sobre Alterações Climáticas (COP21 em Paris), mais de 150 países concordaram em estabelecer objetivos para limitar o aumento da temperatura global a 2 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais. A Europa optou novamente por um objetivo mais ambicioso: limitar o crescimento a um máximo de 1.5º graus.

80% das emissões provêm da energia. É impossível travar as alterações climáticas sem alterar o nosso modelo energético”.

A transição energética é a resposta: uma mudança estrutural urgente para passar de um modelo de consumo e produção de energia centralizado e baseado em combustíveis fósseis e recursos finitos para um modelo descentralizado baseado na utilização de energias renováveis, que nos permita travar as alterações climáticas sem perder o bem-estar. Um modelo que dissocie o crescimento económico do consumo de recursos.

MA | Oito anos após o Acordo de Paris, temos alguma previsão sobre se os objetivos vão ou não ser cumpridos?

JU | Se as coisas forem feitas corretamente, o mais provável é estarmos perto dos 2ºC – mas, embora possa parecer que é apenas meio grau e não há assim tanta diferença, a verdade é que é assustador. Esse meio grau significa 50% mais temperaturas extremas, 50% mais inundações e tempestades e 30% mais secas.

Desde que a UE lançou o Pacto Ecológico (Green Deal) no início de 2020 – que não deixa de ser um pacote de medidas legislativas e políticas para alcançar uma redução de 55% das emissões até 2030 e zero emissões até 2050 –, já o reviu duas vezes.  Em 2021, com o pacote de medidas “Fit for 55”, aumentaram-se em 8 pontos percentuais os objetivos relacionados com as energias renováveis, e em 9% a ambição de reduzir o consumo final de energia. Em 2022, com a guerra da Ucrânia, foi lançado um novo plano urgente para reduzir a dependência do gás russo e acelerar a transição – porque, no caso da Europa, a segurança energética e a descarbonização são duas faces da mesma moeda.

MA | Qual é o impacto nas empresas de todos estes pacotes legislativos e desta ambição crescente de alcançar a transição energética?

JU | A UE só se pode descarbonizar se os seus cidadãos, as suas empresas e as suas linhas de transporte o fizerem. Sei que parece óbvio, mas ainda existe uma enorme falta de consciência do impacto nas empresas e das mudanças que vão ter de efetuar. A diretiva relativa às energias renováveis, por exemplo, já inclui objetivos obrigatórios para os transportes e a refrigeração. Nos próximos meses, vai ser revista a diretiva relativa à eficiência energética dos edifícios para incluir novas obrigações em termos de descarbonização e monitorização, mercado de emissões, mecanismos de ajuste das emissões nas fronteiras, taxonomia europeia, etc. Tudo isto está associado a mudanças que nos vão obrigar a descarbonizar-nos.

Uma das mais impactantes e que já está ativa é a diretiva relativa aos relatórios de sustentabilidade, que substitui a anterior indicação relativa aos relatórios não financeiros e procura aumentar a transparência e a comparabilidade de todas as informações relacionadas com o desempenho ambiental, social e de governação – o ESG – das empresas. Vai ser implementada em 2024 para as empresas com mais de 500 colaboradores, e em 2025 para as empresas com 250 colaboradores e/ou 40 milhões de volume de negócios ou 20 milhões em ativos. No que diz respeito às PME, inicialmente só vai ser obrigatório para as que operam em mercados regulamentados. No entanto, a UE já está a trabalhar num modelo simplificado para que possam entregar relatórios aos bancos, clientes e investidores.

MA | Taxonomia, greenwashing, ESG, ajuste de emissões nas fronteiras ou a Diretiva relativa aos relatórios de sustentabilidade… Como pode o CEO de uma pequena ou média empresa preparar-se para este novo contexto?

JU | Sentir algum receio é normal, não há nada mais assustador do que pensar que se pode tomar a decisão errada – ou, pior, não tomar a decisão a tempo e hipotecar o futuro da empresa. Como CEOs, temos de ser ativistas da sustentabilidade.

Posto isto, para mim há uma série de conceitos-chave que precisamos de compreender. O primeiro é entender os diferentes níveis de compromisso.

O primeiro passo seria ser neutro em carbono: basicamente, o que se faz é compensar as emissões financiando projetos em proporção – por exemplo, projetos de reflorestação que reduzam as emissões para a atmosfera. Este é um cenário a curto prazo e não implica necessariamente um objetivo de redução das emissões.

O segundo cenário ou objetivo seria atingir o ‘net zero’. Neste caso, haveria um plano específico para a empresa reduzir as suas emissões, mais frequentemente baseado nos ‘Science-based Targets’, uma iniciativa a que mais de 1.000 empresas aderiram para estabelecer metas climáticas baseadas na ciência. As compensações, neste caso, só são consideradas para as emissões residuais que não podem ser reduzidas com a tecnologia existente.

O terceiro cenário seria o de emissões zero. Embora seja muito complexo de alcançar, é fácil de compreender: as emissões são nulas quando uma empresa não emite quaisquer gases com efeito de estufa para a atmosfera.

Perdoem-me a utilização de muitos termos ingleses – são os mais difundidos e muitas vezes são mal traduzidos.

MA | Mencionou os ‘Science-based Targets’. Que impacto têm para as empresas?

Os ‘Science-based Targets’ (SBT) são a iniciativa de medição mais difundida atualmente, e a que tem mais legitimidade. Se as empresas quiserem que os seus planos de ação sejam reconhecidos e credíveis, têm de os elaborar em conformidade com a iniciativa dos SBT. São também a base de muitos dos objetivos e sistemas de relatórios que teremos de cumprir, quer por obrigação legal, quer porque os nossos clientes nos exigem que o façamos para nos contratarem.

Trata-se de estabelecer objetivos com uma base científica e cujo cumprimento garante que, enquanto empresa, o nosso impacto será inferior aos 1.5º que comentávamos antes. É preciso definir objetivos a curto e a longo prazo e estes têm de ser ambiciosos, como uma redução das emissões de cerca de 4.2% por ano, que conduz a um cenário de -42% de emissões em 10 anos. É necessário elaborar um roteiro que descreva em pormenor as ações e como vão ser realizadas e, uma vez que este esteja aprovado pela iniciativa ‘Science-based Targets’, é necessário torná-lo público e reportar anualmente os progressos realizados.

Uma das grandes dificuldades disto, sem dúvida, é o facto de sermos obrigados a mapear mais de 95% das nossas emissões de Alcance 1 e 2. As emissões de Alcance 1 são as que geramos enquanto empresa no nosso processo de produção. Por exemplo, as que resultam de sistemas de injeção, refrigeração industrial ou da frota de veículos. O Alcance 2 refere-se à forma como compramos e consumimos energia, o que torna a eletrificação dos processos fundamental, uma vez que a eletricidade pode ser de origem renovável.

Contudo, sem dúvida que a maior complexidade reside no Alcance 3, que é obrigatório reportar quando ultrapassa 40% das emissões totais da empresa – algo que acontece na maioria dos casos. O Alcance 3 engloba, por um lado, as emissões que os nossos fornecedores podem ter gerado, e aqui estamos a falar desde as que podem ter sido geradas pela viagem de avião de um colaborador, às que foram produzidas na extração das matérias-primas de que necessitamos; e também das que são geradas quando o produto sai da fábrica, por exemplo se tiver de ser processado ou refrigerado até ser vendido, ou transportado, bem como a reciclagem e o fim de vida.

A distribuição das emissões varia muito de acordo com o tipo de empresa: em geral, as de Alcance 2 são as menos pesadas, pois podem ser facilmente eliminadas graças às energias renováveis.

Independentemente de as empresas optarem ou não por implementar os ‘Science-based Targets’, estes vão ter impacto sobre elas. Cada vez mais empresas estão a aderir e uma das primeiras medidas a tomar para reduzir as suas emissões de Alcance 3 é exigir que os seus fornecedores possam elaborar relatórios relativos à sua pegada de carbono e que tenham um roteiro claro para a reduzir. Ser sustentável vai ser absolutamente necessário para a competitividade das empresas.

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