O setor elétrico enfrenta neste momento uma onda de mudanças radicais que acontecem diante dos nossos olhos a cada dia. O nosso desafio enquanto sociedade é limitar o aquecimento global e conseguir a neutralidade climática, ou seja, conseguir garantir emissões líquidas zero de gases de efeito estufa até 2050.
Porque é que esta evolução é tão disruptiva para o setor elétrico? Talvez possamos simplificar explicando que há três elementos-chave do sistema que estão a atravessar um processo de mudança em simultâneo:
- O novo mix de geração, que está a evoluir progressivamente para que esta seja 100% renovável, limpa e totalmente descentralizada.
- O novo padrão de consumo, com alto impacto nas curvas da procura, o que se deve à crescente eletrificação da climatização e dos transportes (e-mobility) e da implementação massiva do autoconsumo solar. Por exemplo, um único veículo elétrico pode facilmente duplicar o pico de consumo a nível residencial, mas o carregamento inteligente será fundamental para limitar os investimentos necessários, os impactos na rede e, em última instância, achatar a curva de carregamento, individualmente ou de forma agregada.
- O novo comércio de eletricidade e as regras através do qual é intermediado, uma tendência derivada dos novos modelos de negócio habilitados pela digitalização, a revolução das plataformas e a economia digital: estamos a falar de novas oportunidades para a rentabilização de ativos energéticos, cada vez mais descentralizados, mas ao mesmo tempo mais interconectados; e conceitos como a venda de energia entre pares (peer-to-peer energy trading), comunidades energéticas, agregação de recursos energéticos ou as Virtual Power Plants. Em suma, está a configurar-se um grande mercado energético onde tanto a energia como o dinheiro e os dados vão fluir de forma bidirecional, o que muda tudo.
A boa notícia é que não seremos apenas meros espectadores como temos sido até agora: esta revolução energética vai impactar-nos a todos, enquanto consumidores de eletricidade, mas também poderemos beneficiar dela. Ou seja, poderemos monetizá-la sendo “fornecedores” de serviços de energia que antes não existiam.
Para além destas tendências, a transição energética também nos trouxe toda uma miscelânea de novos conceitos e siglas, nem sempre fáceis de assimilar, e que muitas vezes descrevem nuances tão subtis nos novos papéis do consumidor que podem passar despercebidas até mesmo aos mais especialistas.
Entre todos estes conceitos, a palavra que talvez melhor descreva, no geral, o novo cenário que estamos a enfrentar é “prosumidor”. Também utilizada como “prosumer” em inglês, é um acrónimo formado pela fusão das palavras inglesas “producer” (que gera eletricidade) e “consumer” (que consume eletricidade). Falando sempre, portanto, de uma perspetiva de gestão da energia, une num mesmo assunto duas atividades básicas: a produção e o consumo de energia elétrica, e engloba num único termo as diferentes etapas através das quais um consumidor pode evoluir, e que detalharemos mais tarde. O termo pode parecer novo, mas foi cunhado por Alvin Toffler (sociólogo e futurista) no seu livro “The Third Wave” há mais de 40 anos. Falar de “prosumidores”, hoje em dia, é colocar o consumidor de eletricidade no CENTRO, como peça essencial do novo quebra-cabeça energético que estamos a enfrentar.

Cada um destes prosumidores da futura “rede de microgrids” hiperconectada em que a rede elétrica se está a transformar terá capacidade preditiva para maximizar a utilização do autoconsumo derivado da sua geração renovável no local, gerirá de forma inteligente o seu armazenamento (geralmente em baterias) e, por fim, aplicará flexibilidade dinâmica na gestão das suas cargas. Tudo isto para consumir energia de forma independente da rede, bem como para a partilhar, armazenar ou descarregar no sistema de forma inteligente e automatizada, dependendo do que lhe seja conveniente em cada momento.
Tradução Imagem: Geração Centralizada > Rede Elétrica Convencional > Contador > Controlo Microgrid > Produtores > Carregamentos Flexíveis > Armazenamento > Microgrid
Porque é que a Flexibilidade é tão importante?
Quando falamos de “estabilidade da rede”, referimo-nos à obrigação técnica do “Operador do Sistema” de fazer corresponder geração e procura em todos os momentos, para manter as condições técnicas (tensão e frequência) necessárias para garantir a qualidade e a segurança do abastecimento.
As operadoras e transportadoras do sistema elétrico são responsáveis por garantir o fornecimento de eletricidade a residências, empresas e serviços públicos. Um dos grandes desafios das operadoras na Península Ibérica, devido à alta penetração da geração renovável no sistema (sem gestão, intermitente e de previsão incerta), será mudar radicalmente a filosofia do controlo da estabilidade do sistema – adequando o consumo à geração disponível a cada momento, ao invés de adaptar a geração de eletricidade ao consumo, como acontece atualmente.

Tradução Imagem:
A “Flexibilidade” como necessidade
Geração e Consumo
Oferta – 50 Hz – Procura
Cenário Tradicional de Estabilidade da Rede (Geração Centralizada)
Oferta – 50 Hz – Procura
Novo Cenário de Estabilidade da Rede (Alta penetração de geração renovável e flexibilidade do lado da procura)
Eliminação gradual de centrais térmicas alimentadas com combustíveis fósseis
Assim, quando ouvimos falar em “Gestão Ativa de Energia”, referimo-nos a esta evolução na atitude dos consumidores face à sua “autogestão energética”, que será cada vez maior e mais proativa. Tudo isto vem dar resposta a um duplo compromisso e interesse: primeiro em benefício do próprio prosumidor, e depois em benefício da comunidade:
- Minimizando a sua própria fatura elétrica, garantindo a redução do seu impacto ambiental devido à energia da rede que deixa de consumir;
- Prestando «serviços de flexibilidade» ao sistema elétrico que sejam rentáveis para o próprio prosumidor, mas também essenciais para garantir a estabilidade da rede.
Tudo isto está intimamente ligado à digitalização da gestão de energia BTM (“atrás do contador” – “Behind The Meter”) como resposta a todos os desafios já mencionados. A microgrid é o “habitante tecnológico” capaz de interoperar os nossos recursos ativos de energia e rentabilizar toda esta filosofia de “prosumidor” de forma automatizada, orquestrando a maximização do autoconsumo, a gestão inteligente do armazenamento, a flexibilidade de carregamento e a interconexão com os mercados num único sistema.
Para mim, talvez o conceito mais poderoso de todo este novo cenário seja o de «proatividade». Num resumo breve da evolução destes papéis, poderíamos dizer que:
- Consumidor: É o agente do Sistema de Energia Elétrica (SEE) que consome energia elétrica e paga a quantidade consumida aos fornecedores. É um papel eminentemente passivo: consome e paga;
- “Prosumidor”: É o agente do SEE que é ao mesmo tempo consumidor e gerador, podendo armazenar eletricidade e tendo uma atitude proativa de sustentabilidade. Continua a pagar aos fornecedores, através das suas faturas, a restante energia consumida da rede, e pode até prestar outros serviços ao sistema. É um papel eminentemente ativo, com diferentes estágios evolutivos em termos de “proatividade”, dependendo do seu grau de comprometimento com a descarbonização. Poderíamos dividi-lo em 3 etapas:
- Self-Consumer: Agente do SEE que deu o salto para gerar total ou parcialmente a sua própria energia elétrica, principalmente com fontes renováveis, destacando-se a tecnologia fotovoltaica;
- Prosumager (Producer+Consumer+Storager): Agente do SEE que, para além de gerar a sua própria eletricidade, decidiu armazenar parte dela para a gerir de forma inteligente;
- Flexumer (Flexibility+Producer+Storager+Consumer): Agente do SEE que se torna flexível (combinação de “prosumidor” e flexibilidade) e utiliza o seu consumo de eletricidade, bem como as suas capacidades de geração e armazenamento, de forma flexível. Assim, presta serviços ao mercado (para garantir o abastecimento), à rede (serviços de congestionamento) ou ao sistema (serviços de estabilidade). Continua a pagar aos fornecedores pela energia que consome, mas ao mesmo tempo recebe receitas adicionais pelos serviços de flexibilidade prestados.

É importante notar (como se descreve no primeiro gráfico que ilustra este post) que a tecnologia necessária para a implementação de cada uma destas etapas do “prosumidor” é diferente, mas é a microgrid que viabiliza, de forma transversal e evolutiva, a orquestração de todos os papéis, de acordo com as “atitudes” que o “prosumidor” quer adquirir na sua gestão energética a cada momento.
Tradução Imagem: A Microgrid no centro do sistema
Sistemas de Planificação > Previsão Meteorológica > Mercado Preços Energia > Demand Response requests > EMS (Microgrid) > PMS (Microgrid) > Geração no local (Renováveis, Geradores diesel, etc.) > Baterias (BESS) > Carregamentos Flexíveis (HVAC, Carregadores VE, entre outros)
Mercados > Microgrids
Cloud > Site

Se o custo do armazenamento continuar em queda, como se espera, será cada vez mais habitual que todos consumamos, produzamos e armazenemos energia, ao mesmo tempo que otimizamos quando e como fazemos cada uma dessas três coisas, graças a uma gestão inteligente e automatizada.
É provável que a proliferação de opções de novos serviços de energia (por exemplo Energy as a Service) leve simultaneamente à estratificação dos consumidores, alterando a interface histórica com as empresas de distribuição e comercialização de energia elétrica previamente estabelecidas. Para além disso, vão surgir novos intermediários (como os “agregadores independentes”) para dominar a arte de agregar as cargas, a geração distribuída e o armazenamento de um grande número de consumidores, transformando-os em centrais elétricas virtuais (VPP, na sua sigla em inglês), cruciais para a estabilidade e a otimização de todo o sistema.
Em suma, para cumprir os compromissos que temos, enquanto sociedade, para com o nosso planeta e deter as alterações climáticas, é urgente que todos – enquanto consumidores de energia – nos tornemos agentes de mudança. A Europa precisa de colocar os consumidores no centro dos mercados de energia, com uma regulamentação dinâmica centrada no “prosumidor”, capacitando para contribuir ativamente e beneficiar de um sistema energético flexível. É neste sentido que estão a ser direcionadas todas as novas políticas, regulamentos e subsídios da União Europeia (CEER 2022-2025 Strategy).
Torne-se “prosumidor”: o planeta agradece.
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